Forma é Conteúdo
Sim, o conteúdo pode estar definido. Após um processo intenso de criatividade, de vários inputs de informações, de divagações e combinações, de orientações e obrigações, enfim, temos um roteiro, ou algo que o valha.
Mas isso não é tudo, e desse roteiro, seguindo exatamente esse roteiro, você pode ter vários filmes.
Pode ter a versão mais previsível, muito próxima do que o diretor e/ou o roteirista esperava.
E pode ter várias outras que podem surpreender… pro bem ou pro mal.
A maneira como você desenvolve a história, as ferramentas de montagem que vc usa, transformam a percepção, induzem o espectador a outras realidades, ou seja, interferem sim no conteúdo.
A forma, a partir do momento que induz à novas realidades de entendimento do filme, também se faz conteúdo
O medo do goleiro diante do pênalti
Quadro paredes e um monitor à sua frente.
Listas de bins, takes, canções, efeitos a usar, timelines de brutos sincados e de selects esparramados na tela.
E o trauma de uma timeline vazia… zero….nada…..
……ainda.
Dali vai sair algo, uma cria, uma criança, uma criação, um filme!
Pelo menos é o que se espera…
Mas é necessário colocar a primeira cena….ou o primeiro som….
Sempre um começo. Um começo. Um recomeço.
Não é exatamente um trabalho fácil nem tampouco glamuroso.
Horas a fio vendo e revendo cenas…
Tentando ver algo novo, uma guia, um atalho, fugindo dos olhares viciados pra chegar em algum lugar novo
Experimentado um sorriso antes ou depois, longo ou curto. ao vivo ou em “off”….
Troca trilha. Corta rápido. Deixa mais. Põe PB. Desfoca. Rebaixa. Frita!
O dia passou lá fora. Fez frio? Fez chuva? Ventou? Começou uma guerra?
Não sei, estava editando.
Entre 4 paredes, um monitor, mouse, teclado.
Parindo um filme.
Fresh Eye
O que o editor tem que o diretor, o fotógrafo ou o produtor não tem?
O olhar inédito, puro, desprovido de história.
Não interessa se vc demorou 4 horas pra chegar naquele morro e fazer aquele plano do final do dia.
Se precisou usar toda sua habilidade pra convencer uma autoridade qualquer pra gravar naquele espaço.
Se ator só acertou a fala na quadragésima tentativa….
Eu chego na ilha e a conversa é entre eu e a imagem.
Aí ela se revela, mostra o que é, de fato.
Sem mais.
E eu me coloco no lugar de quem nunca viu, nunca foi, nunca produziu, nunca fotografou ou dirigiu.
Isso dá o real valor da imagem.
Sem mais.
Cut your Darlings
O apego às imagens, que é muito comum entre nós, montadores.
O avesso do Fresh Eye…
O desapêgo é uma virtude, quase sempre muito necessária.
Existem momentos que o filme exige que você trabalhe no modo OLX (desapego total), até porque, quase sempre o trabalho consiste em montar, depois cortar, remontar, cortar, reordenar e cortar.
É um exercício constante e requer humildade e confiança.
Humildade em reconhecer que aquele clip final que vc montou com imagens espetaculares é totalmente
desnecessário, que a trilha sonora que vc adora não cabe, que o seu olhar pode estar cansado ou contaminado pelo próprio esforço em si de chegar a um corte final.
A confiança de quê a criação acontece a cada “in” e “out”, o que se criou, se deletou, e depois recriou, e depois deletou.
Você cria e apaga como quem respira e expira.
E assim vai, até chegarmos no ideal, ou mais próximo disso, até onde a verba permitr….
A imagem. O tempo
Um dos segredos da montagem é o ritmo. O tempo.
Mas como saber qual o tempo?
Você dá o play… “in”…?…e…… e quando vai dar o “out”??
Deu tempo de ver? De ver o quê? Pra quê? Pra quem?…
Na verdade o tempo da imagem está na própria imagem.
É como se ela carregasse no seu DNA, o seu ritmo, o seu tempo de vida no filme.
Aprender e apreender isso faz parte da arte de bem montar.
Experiência? Sensibilidade? Prática? Conhecimento?
Sim, tudo isso e mais um pouco resume o
Aprender a olhar….
E somado a isso, ainda, se colocar no lugar de quem vai ver.
E vai ver pela primeira vez e talvez uma vez só.
Daí se faz uma conta, ou uma receita, um pouco de lógica no entendimento da história, um susto aqui, um estranhamento ali, uma pitada de emoção noves fora um Jump cut seguido de timelapse com rampa! e……
…. melhor ver tudo de Novo amanhã cedinho com a cabeça fresca pra ver se funciona mesmo.
Você faz maravilhas com edição!
Mas o que é editar?
Não se trata apenas de cortar, emendar, esticar ou ordenar.
Ou seguir o roteiro, como se fosse uma receita de bolo.
É claro que em alguns casos somente seja necessário isso, e é daí que vem aquela diferenciação com a qual me deparei em uma certa época: editores X montadores.
Dois termos que a grosso modo são sinônimos. Porém serviram (talvez ainda sirvam) pra distinguir os que pensam o filme, dos que apenas apertam botões.
Uma edição que pense o filme, que conheça todos os insumos (brutos, arquivo, arte, trilhas, efeitos, etc), que conheça os recursos técnicos do software e que queira sempre o melhor, e não apenas fazer o que está muitas vezes, pobremente no roteiro, fará uma grande diferença no produto final.
Não é fácil, porque esse pensar, esse abrir os horizontes, esse mergulhar mais a fundo, vai de desdobrando em uma infinidade de possibilidades, de caminhos, de histórias…
Vai necessariamente potencializar o que foi filmado, o que foi dito ou escrito no roteiro.
Ou então, de outro lado, aquele que obedece a lei do menor esforço, vai estragar, comprometer o que seria
Contadores de histórias
No final das contas somos isso, contadores de histórias.
Elas nos chegam aos pedaços, escondidas (ou escondendo algo), indiferentes, muitas vezes desconexas. Frias. Caladas. Quase sem sentido.
Tem aqueles pedaços que ninguém dá nada por ele. Acho que gravaram sem querer. São meus favoritos.
Aí jogamos tudo no liquidificador.
Um dos prazeres deste ofício sem dúvida, tornar tudo isso um corpo, algo uno que faça sentido.
De um nada: começo meio e fim. Não necessariamente nessa ordem.
Uma estrada (a gente também chama de timeline) com curvas, retas, subidas, descidas, aceleração, desaceleração, emoção, susto, riso, choro, raiva, paralisação, indignação, medo, perplexidade, mergulho.
Depois é só exportar.